MARIA CARPUÇAS

MARIA CARPUÇAS

MARIA CARPUÇAS

A noite de quarta-feira, a quarta da Quaresma, era uma noite diferente. Era a noite da Serração da Velha.
Durante todo o longo período do tempo santo da Quaresma, o povo, temente a Deus e respeitador das tradições da sua religião, punha de parte as danças e folguedos. Trocava-os pelo recolhimento, pela ponderação.
Nestas sete semanas, a excepção era a quarta-feira do meio da Quaresma. Nessa noite, rapazes e homens podiam, à vontade, dar livre expressão ao seu desejo de folgar, bloqueado desde Quarta-Feira de Cinzas; apenas durante uma noite, mas sempre bem aproveitada.
Reunidos em grupos de duas dezenas ou mesmo mais, chefiados pelo testamenteiro, vulgarmente chamado pregador, faziam-se acompanhar de grandes chocalhos e lataria, tudo quanto pudesse fazer barulho. E também do cortiço e do serrote; para serrar com grande e característico ruído — para serrar a velha.
A escolhida, como se depreende, era sempre senhora idosa. Das mais velhas da aldeia.
E para ser uma boa escolha, tinha de ser alguém que tivesse filhos — para que os serradores pudessem ser considerados seus netos — mas que, acima de tudo, se revelasse o mais possível avessa à função.
As que, logo de início, reagiam com palavras amigas, convidando: — Vinde, meus netinhos, vinde beber qualquer coisa, que deveis estar cansados — eram de imediato deixadas em sossego, por demasiado pacíficas e, por isso, sem interesse.
Boa para a luta desejada era, todos os anos, a ti Maria Carpuças. Primeiro do postigo, depois do patamar do seu cardenho, respondia ao desafio com impropérios, com insultos, com palavrões.
De baixo, a malta, chefiada por ti Diamantino, começava:
— Chorai, netinhos chorai, que a vossa avó vai morrer. E toda a gente respondia ao convite, em altos gritos, “chorando” a perda iminente daquela “avó”.
E chocalhava. E chocalhava, num barulho infernal.
Era o início de uma batalha que só vinha a terminar quando entendiam que a velha estava devidamente serrada. E sempre tendo em conta as suas reacções mais ou menos violentas.
O testamenteiro continuava:
— Ó velha, aqui estão os teus queridos netos. Sabemos que vais morrer. Antes, porém, precisas de fazer o teu testamento, das palhas que leva o vento. Diz-nos, pois, as tuas deixas:
— A quem deixas a tua galinha? — À minha melhor vizinha.
— E o teu rosário de agonia? — Ao padre da freguesia.
— E a quem deixas a palha do teu colchão? — Essa é para o ninho do meu cão.
— E para quem fica o teu tonel? — É para o meu filho Manuel.
Sempre rimando, o testamenteiro lá dava a volta a todos os haveres. Fazendo as perguntas e dando as respostas, conseguia verdadeira crítica social, pelas pessoas que associava aos objectos a doar.
Chorai netinhos, chorai,
Que a nossa avó vai morrer;
Lágrimas de quatro a quatro
Não a deixeis esquecer.

De novo o choro, os gritos, as lamentações. E os chocalhos, o barulho infernal.
Estava terminado o testamento e a chegar ao fim a serração daquela velha, a ti Maria Carpuças. Que, entretanto, estava completamente rouca de tanto berrar, de tanto barafustar, de tanto insultar. E cansada também de arremessar sobre o inimigo tudo quanto pudera armazenar para o efeito: água, pedras, cavacas, líquidos orgânicos.
O testamenteiro, antes de terminar, ameaçava ainda:
— Ó velha, se desta escapares, fica já combinado que, para o ano, cá voltaremos para te serrar. E para isso, fica também já nomeado o José Silva de Vila Nova, que tem um irmão que te espeta e outro que te leva à cova.
Era o fim.
A malta partia, finalmente, entre grande chocalhada e vozearia.
Mais adiante, em absoluto silêncio, marchava a caminho da próxima vítima.

António Lopes Pires