Os grandes dias eram o Domingo Gordo e o Dia de Entrudo. A dança começava cedo. Novos e velhos estavam presentes: para dançar; para ver; para parodiar; para aplaudir. As danças de todo o ano enchiam a tarde. A Delina da Pedra e a Maria da Maça eram as principais, chamando para a roda, criticando os ausentes:
Quem seria a mascareta?
Quem seria a mascarota?
Mascareta que não dança,
Olha a mim que se me importa!
E continuavam com um sorriso maroto, ao mesmo tempo que se abraçavam alternadamente ao par da esquerda e ao da direita:
Dá-me um só beijo,
Dá-me um só dá;
Mascareta que não dança,
Olha a mim que se me dá.
O Manel da Inácia muito gostava desta dança! E o que ele sofria? Aquele afago da Delina – braço suavemente poisado em volta do seu pescoço, cabeças encostadas, faces quase se roçando…
– Dá-me um só beijo…
Deixava-o sufocado. O raio da rapariga dançava com ele horas a fio, dava-lhe todos os entenderes, mas aceitar o seu amor, isso mais devagar. Como dizia a Helena do Pífaro:
– Trázio à corda!
De repente, a roda partia, a dança parava. Eram o Manel da Grila, o Zé Bisnau e os outros. Haviam-se aproximado sem dar nas vistas, disfarçadamente. De supetão, saltavam para elas – a enfarinhar, a enfarruscar, a enfarinhar, a enfarruscar. Gritos, algazarra, gargalhadas, alguns insultos pelo meio.
Pouco depois, tudo voltava ao normal. Do incidente, que se repetiria vezes sem conta, ficavam no ar os últimos comentários e sorrisos:
– Por esta não esperavas, ó Toino.
De verdade, aquela Gracinda da Feira tinha força como um burro. Os seus braços castigados por horas e horas a tirar água de balde no engenho da Felgueira, aguentaram o embate mantendo o inimigo à distância.
– Botei-lhe a mão esquerda ao cachaço, dizia, saboreando as palavras, que ele nem buliu. Só esperneava.
E enquanto isso, com a direita, sacou do bolso campeiro do avental um bom punhado de cinza que enfiou ao desgraçado pela boca, pelo nariz, por onde pôde. O triste, engasgado, a espirrar, a tossir, foi-se dali acagaçado, jurando vingança.
Depois eram os máscaros. Aos pares, isoladamente ou em pequenos grupos, muito bem disfarçados, de caras e até de mãos escondidas para não serem identificados.
O Samuel Alho, às tantas, passava com a sua funçanata. Mais de vinte máscaros. Ao som de infernal orquestra, iam evoluindo de acordo com o ensaiado e as ordens do mestre, dadas através de fortes assobiadelas.
Quem também nunca faltava era o Moira trazendo em cada ano uma novidade, com aquela sua graça natural que todos conheciam e apreciavam. Em grande penico de barro, comprado especialmente para o efeito, deitou uns bons cinco quartilhos de vinho branco onde pôs a boiar grandes pedaços de chouriça. Calmamente, sem pronunciar uma palavra, rua abaixo, rua acima, ia oferecendo do petisco. Caras horrorizadas, gestos a despedir o atrevido. Ele, então, tranquilamente, limpava o bigode às costas da mão e bebia do penico, piscando maliciosamente os seus olhos miudinhos.
O Toino manco não gostara nada do tratamento recebido da Gracinda. Uma destas nunca lhe acontecera. Vá que ele tinha um defeito na perna esquerda; mal de nascença a que ao tempo ninguém ligara; mas tinha força de homeme nunca fugira a brigar nem confessava medos. Porém, o raio da rapariga filara-o pelo pescoço com tais ganas que ele não teve tempo para mais nada. Depois, com a boca, o nariz e os olhos cheios de cinza, que mais podia fazer?
Saiu dali amarfanhado, mas garantindo que ela lhas havia de pagar.
Já noite entrada, passou por casa, foi à loja e pegou no panelão de barro preto de Molelos, já esbeicelado e rachado no fundo, onde deitara umas vinte dúzias de bugalhos que pacientemente havia juntado.
Panelão debaixo do braço, na calada, saiu pelo quintal do Chambelador, direito ao rio. O caminho era mais longo por ali; mas mais seguro. Pelo largo do Sanomédio havia ainda muita gente capaz de lhe descobrir as intenções e de deitar a perder todo o seu plano.
Com ligeireza atravessou as poldras saltando de pedra em pedra. O luar não era muito; mas dava para ver reflectido na água o seu sorriso de triunfador. Subiu a ladeira até à casa da Augustinha. Aí, coseu-se à parede e, pé ante pé, seguiu em frente.
No largo da Ferradora virou à esquerda. Trinta, quarenta passos adiante, lá estava a casa da Gracinda. Passou em frente para entrar pelas traseiras do cortelho, saltando o muro. Apurou o ouvido. Lá dentro conversava-se animadamente. Não dava para entender, mas não seria difícil adivinhar que falavam dos acontecimentos do dia, enquanto preparavam o caldo e as batatas da ceia.
O coração batia-lhe apressado. O panelão dos bugalhos parecia-lhe agora mais pesado. Tinha de subir os dez a doze degraus da escada que conduzia à varanda, donde, pela janela, o atiraria para o interior. Ouvia agora, claramente, a ti Laurinda:
– Queres mais caldo? Deixa ver a malga.
Iria em frente? Ou desistiria?
Afoitou-se. Subiu. Lá em cima, por uma frincha do postigo, viu passar uma réstia de Luz.
– Está só encostado
Avançou. De repente, empurrou o postigo e arremessou o panelão que, com enorme estrondo, se escaqueirou, espalhando os bugalhos por toda a casa.
Gritos, gritos e mais gritos foi o que se ouviu. Apanhadas assim de surpresa, outra coisa não puderam fazer.
Num pulo, perna fanfa a dar a dar, desceu as escadas para se pôr na alheta. Em baixo, hesitou. Por onde sair? No caminho já se ouviam vozes: da Augustinha, dos filhos e da Ferradora que, ouvindo o griteiro, acudiam pressurosos.
– Pelos quintais, pensou.
Deu meia volta e ele aí vai. Com a pressa e o escuro, junto ao poleiro das galinhas, aquele pé esquerdo fê-lo tropeçar em algo que o desequilibrou e deitou ao chão. Era um cântaro de barro que se espatifou completamente com o peso do seu corpo. Todo molhado, levantou-se e, sempre a correr, saltou o muro e desapareceu quintais adentro.
Lá longe, ofegante da corrida, mas radiante pelo sucesso da sua expedição, e vingado da vergonha da tarde, sentou-se para descansar. Estar assim todo molhado não lhe agradou; mas enfim…
– A roupa seca depressa.
Nisto, sentindo um cheiro desagradável à sua volta, um pensamento lhe passou pela cabeça:
– Será que…
Cheirou as mangas do casaco, o peito da camisa, as pernas das calças e torceu o nariz.
– Rai’s a partam. Pois não era o cântaro das couves?
Sim senhores. Era o cântaro onde a Gracinda, a mãe e a irmã mais nova vinham juntando, há mais de quinze dias, a urina que, depois de diluída em água, havia de adubar as couves do quintal.
António Lopes Pires