O CALDO TRULURU

O CALDO TRULURU

A. Lopes Pires
Para o povo português, no passado, um passado ainda não muito distante, sobretudo para as populações do nosso interior serrano, inóspito e agressivo, o caldo constituiu a grande, quando não a sua única forma de cumprir as refeições do dia-a-dia.
A panela – ó que belas e saborosas as panelas de ferro, de três pernas – posta ao lume logo pela manhã, ali se mantinha o dia inteiro, sempre pronta a responder, enquanto podia, às muitas solicitações dos membros da família, principalmente da canalha miúda, que por ali passava em busca de com que compor estômagos famintos, cedo dilatados por quantidades suprindo qualidade.
Seu complemento natural era o pão, o pãozinho de Nosso Senhor de que não se podia perder migalha por mais ínfima, a broa do milho da nossa Beira, esmiolado para engrossar um pouco mais, sempre cultivado com geral carinho e mil canseiras:
Eram as sementeiras começadas ainda o dia era noite e tantas vezes terminadas quando o dia já não era.
Ele eram as sachas e as mondas debaixo do sol tórrido, impiedosamente caído sobre as costas curvadas das mulheres que, em uníssono, alegravam os campos com as dolentes e tristes cantigas onde embrulhavam suas mágoas.
Ele eram as regas a balde dos porcos nos poços de cegonha do tempo dos moiros, a poder de braços moídos por tantas horas a fio empurrando para baixo, puxando para cima.
Ele eram as escanadas, o corte, a alegre escamisada onde a troco de muito trabalho gratuito e uma pouca de broa que umas pobres azeitonas ajudavam a engolir e, quem sabe, uma pinga de água-pé, talvez se pudesse roubar um beijo saboroso.
Ele era a malha já na eira ao som de cantilenas mais parecendo urros furiosos de quem vê as forças a minguar e o que-fazer nem por isso.
Ele era, enfim, o guardar em arcas, mais vezes arquinhas que arcazes, o resultado de tão canseirosas diligências.
Tudo por causa do pãozinho de Nosso Senhor, apanhado pressurosamente e com carinho, absolvido por carinhoso beijo, sempre que mãos descuidadas deixavam cair em terra qualquer migalho que fosse.
Pãozinho de Nosso Senhor que bem casava com o caldo da panela de três pernas, feito de couves ou nabiças, de feijão miúdo ainda não seco ou de abóbora, de cabeças de nabo ou de algumas plantinhas crescendo livremente por aí, muitas vezes aromatizado com outras também por aí crescendo.
Com o caldo truluru é que não. Com este caldo ninguém casava. Nem os espigos, nem os trêpelos, nem as batatas, nem as cebolas, nem os feijões, nem nada. Muito menos o pãozinho de Nosso Senhor.
Com este triste caldo, o caldo dos mais pobres, dos verdadeiramente miseráveis, só casavam as cabaças. Ainda verdes, cortadas aos pedaços, com umas areias de sal, lá ferviam, ferviam até que os dentes lhes pudessem entrar e até que dessem a ideia terem ajudado a engrossar aquela água chilra, uma triste augaritana . Era o caldo truluru que, como dizia o povo, ainda bem não está na boca, já está a sair do cu.