A grande revolução da doçaria portuguesa dá-se no final do séc. XV com a introdução do açúcar nas cozinhas monásticas.
Muito embora se saiba que durante o período do domínio árabe sobre a Península Ibérica, a confecção de doces constituísse uma prática comum desse povo, provavelmente através da utilização da farinha de alfarroba que possui, em média, 48% a 56% de açúcar, é com a generalização da exploração das plantações de cana de açúcar no arquipélago da Madeira que o açúcar passa a constituir um ingrediente comum no âmbito da nossa culinária.
Quando falamos da doçaria tradicional portuguesa, associamo-la, normalmente, aos doces conventuais não só pelo facto de, efectivamente, ter sido nos conventos e mosteiros que nasceram os mais requintados doces portugueses, como ainda pelo facto de essa sua marca se ter perpetuado pelo tempo fora através da sua designação. Como exemplo disso temos os famosos papos de anjo, o toucinho-do-céu; as barrigas de freira, os tachinhos de abade, o pudim do abade de priscos…
Se por um lado, os conventos e mosteiros, na sua grande maioria fundados por reis e príncipes que, através de forais, mercês e padroados por eles atribuídos, lhes garantiam, por si só, uma subsistência abastada e farta, por outro lado, o facto de acolherem nas suas Regras as filhas da nobreza e das famílias mais ricas, portadoras de um conjunto de saberes relacionados com os seus hábitos alimentares e receitas familiares, levou a que a conjugação destes dois aspectos criasse as condições ideias para que, no seio dessas instituições, nascessem tão aprimoradas preparações gastronómicas e, entre elas, os mimos de uma doçaria rica e complexa que só alguns, os escolhidos, tinham o prazer de provar e de, com elas se deliciarem.
As receitas e métodos de confecção constituíam património dos conventos, havendo por parte das freiras o compromisso de, ciosamente, guardarem tal tesouro. Fazia-se nessa altura a distinção entre a doçaria requintada e apurada, farta em açúcar e ovos, cuidadosamente seleccionada para as ocasiões especiais e que só era servida à mesa dos reis, do clero, dos nobres e da alta sociedade e a doçaria de confecção mais simples, normalmente os bolinhos e biscoitos que as próprias congregações classificavam de doçaria pobre.
Estas autênticas maravilhas saídas das tão prendadas mãos das freiras ganharam nome por toda a Europa e durante várias centenas de anos, este saber foi-se acumulando e evoluindo fruto de uma longa experiência, da introdução de novos ingredientes, de muitas horas de trabalho com dedicação, paciência e devoção que as freiras, conscientes da sua importância, lhes dedicavam.
Mais tarde, com a extinção das Ordens Religiosas em Portugal em 1834 e confrontadas com a necessidade de garantir a sua subsistência algumas freiras começaram a comercializar, entre outras coisas, a tão requintada doçaria pela qual os seus conventos se tinham tornado tão famosos. Para além disso, o facto de, nessa altura, algumas freiras e sobretudo as serviçais dos conventos terem sido, de alguma forma obrigadas a regressar às suas casas, levou, naturalmente, a que a confecção dos doces, até então “propriedade” dos conventos se alargasse também à comunidade.
Foi com alguma fuga de informação e com a “tradução” das notas manuscritas de muitos arquivas dos mosteiros que, gradualmente, os doces conventuais foram integrando as receitas tradicionais portuguesas e chegaram até aos dias de hoje, proporcionando-nos, o grato de prazer de nos deleitarmos com tais iguarias de comer e chorar por mais, não fosse a ideia de uns quilitos a mais a travar tão impetuosos desejos.
Conceição Matos